terça-feira, 31 de agosto de 2010

O perigo das subvenções proféticas

O perigo das subvenções proféticas
Por Nelson Gervoni


Um olhar sobre o profetismo do Antigo Testamento, mesmo que não tão exegético, nos mostrará que havia uma relação entre os profetas de Israel e a liderança deste Estado. Mostrará que os profetas se envolviam nos assuntos políticos e sociais, tanto quanto nos assuntos religiosos, pois viam uma profunda relação entre eles. Mostrará ainda que esta era uma relação de conflitos, confrontos e quase nenhum conforto.
Para citar apenas alguns personagens do profetismo israelita, coube a Samuel um importante papel no início da realeza israelita, enquanto Elias e Eliseu confrontaram o poder de Samaria e Damasco, e Isaias interferiu nos negócios públicos do Estado e denunciou a corrupção de Judá. Já Amós, que parece ser um símbolo da postura denunciativa profética, foi impiedoso em suas críticas a Jeroboão II, tornando-se o porta-voz de um Deus irado contra os poderosos de sua época.
Entretanto, os profetas de Israel não foram os primeiros a adotarem esta postura em relação ao poder. Arquivos reais de Mari, cidade das margens do médio Eufrates, mostram que profetas agiram como eles na realeza de Mari, aproximadamente mil anos antes. O profetismo em Mari "...punha o rei em guarda contra algumas negligências rituais em relação aos deuses ou contra sua teimosia em não aceitar suas advertências; opunha-se ao projeto da construção de uma porta fortificada ou anunciava ao rei o malogro de uma iniciativa militar..." (in AMSLER, S. Os profetas e os livros proféticos, Paulinas).
Esta relação entre o profetismo e o poder era garantida, entre outras coisas, pela independência nutrida pelos profetas e relação ao Estado. Podemos pensar em pelo menos três tipos de independências necessárias ao profeta, que lhe asseguram o uso do instrumental profético de forma legítima: independência temática, independência do objetivo e independência econômica.
Vejamos a independência temática do profeta Jeremias em relação a um de seus contemporâneos, o rei Josias (639-609 a.C.). Embora o tema de Josias fosse legítimo, pois propunha a reforma de Judá através da purificação religiosa, da reparação do templo e da redescoberta e observação do livro da lei, e não obstante seu temor e obediência a Deus (2 Reis 22.2) – o que criava afinidade entre ele e Jeremias –, podemos afirmar que o tema do profeta não foi tributário do tema governamental. A temática de Jeremias se amplia. Sua obra desenvolve temas interessantes, mas um deles é destacado na medida em que na sua vocação é designado como profeta entre as nações (Jeremias 1.5). Enquanto o olhar do rei está voltado para o centro de Judá, o olhar do profeta se volta para os acontecimentos históricos da sua época, levando-o a se preocupar com a política internacional (Veja Jeremias 46.2, 13; 47.1; e 49.28, 34). E como não podia faltar a característica contundente do profetismo, Jeremias é chamado a oferecer, metaforicamente, às nações uma taça de vinho que as faria entorpecer e tropeçar (Jeremias 25.15ss).
Independência de objetivos – Os objetivos dos profetas de Deus não eram os mesmos da liderança do Estado. O rei Jotão, apontado nas crônicas da realeza como poderoso por dirigir seus caminhos segundo a vontade do Senhor (2 Crônicas 27.6), objetivava as grandes obras públicas. Reconstruiu o portão principal do templo de Jerusalém, construiu novas fortificações na cidade, construiu e fortificou várias outras cidades em Judá, ergueu torres de defesa no deserto e edificou muros que tornaram a cidade mais resistente contra ataques. Enquanto isso, seu contemporâneo, o profeta Miquéias, apresenta objetivo bastante distinto: denunciar as articulações das elites para se apossarem de terras que não tinham direito, visto que a alegada herança paterna da qual tentavam se apropriar era um bem sagrado de Israel (Miquéias 2.1-5). Os objetivos de Isaias, outro contemporâneo de Jotão, também eram distintos dos objetivos do poder: atacar a hipocrisia cultual dos moradores de Jerusalém (Isaias 1.10-17), criticar o luxo das mulheres nobres da capital (3.16-24) e protestar contra as violações dos direitos praticadas pelo reino de Judá.
A postura revelada na história do profetismo aponta para a independência econômica dos porta-vozes de Deus, em Israel, ou dos porta-vozes dos deuses, em Mari. Não é necessário esforço hermenêutico para concluirmos que não poderia haver denúncia no nível praticado pelo profetismo se os profetas fossem dependentes das subvenções do poder. Samuel não poderia advertir Saul se recebesse do monarca subsídio para seus projetos. Natã não aplicaria a Davi a metáfora que o fez enxergar seu erro caso tivesse suas viagens custeadas pelo rei. A crítica contundente de Amós não seria possível se deixasse de ser pastor e ocupasse um cargo no gabinete de Uzias, em Judá, ou de Jeroboão II, em Israel. A única exceção parece ser Balaão, que se deixou corromper pela subvenção de Balaque – pelo "preço dos encantamentos" (Números 22.7) – para profetizar falsamente contra o povo de Deus. Este personagem, um misto de profeta divino e adivinho pagão, demonstrou menor visão da vontade de Deus que sua própria jumenta e acabou "advertido" pelo animal após espancá-lo.
A postura profética histórica nos propõe uma interessante e oportuna reflexão sobre o nosso papel como profetas da atualidade, quer sejamos pastores, padres, teólogos, igreja ou entidades paraeclesiais. Aponta para uma revisão da relação entre profecia e sociedade e poder na pós-modernidade. Faz-nos concluir que a independência das subvenções do poder garante ao profeta a legitimidade necessária não somente para profetizar a denúncia, como também avalizar, quando necessário, os atos governamentais. O aval profético em situações em que o poder haja de acordo com interesses da justiça e da ética só tem valor se o profeta for independente. Se não houver independência, o profeta cala a denúncia ou vê o seu aval interpretado como mera retribuição de quem recebe subvenção.
Como mulheres e homens de Deus na atual conjuntura, somos convocados à rejeição das diferentes formas de "subvenções" oferecidas pelos poderes: a "subvenção" das idéias – desenvolvendo uma temática diferente da desenvolvida pelos governos; a "subvenção" das diretrizes – elaborando a nossa própria pauta de objetivos; e a subvenção (esta sem aspas) financeira – buscando alternativas de sustento que não nos calem a Palavra, nem coloque em nossos lábios outra palavra que não seja de Deus.

Nelson Gervoni é teólogo e pastor da Church of the Brethren no Brasil. É professor do Instituto Teológico Bereano e do P.E.T.A (Programa de Educação Teológica Anabatista). É pós-graduado em Assessoramento Familiar e Psicologia Pastoral. Atualmente, cursa Psicanálise no Instituto Lacaniano da Associação Campinense de Psicanálise. É coordenador de Assuntos Ecumênicos do Movimento Evangélico Progressista / SP e 1º Secretário do Conselho de Pastores de Campinas, SP.

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